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POESIA

inexplicações
e outras certezas vagas

Todas as palavras do mundo são sonhos.
Nos sonhos, as palavras descabem-se.
A matéria dos sonhos é a matéria.
Na artéria das palavras, o tempo espesso some.
O que resta não deixa rastro.
Há um astro em cada antro.
Todos os mundos são sonhos de uma palavra etérea.
O nome secreto de Deus é
Espanto

 

 

a camareira

 

Indefinição

 

Poesia é o ápice do lapso da palavra.

 

 

A Camareira

 

Olhando a cena aqui de cima

não sou tão escravo da rima

quanto se imagina.

Ela

(a rima)

apenas arruma

a minha cama

quando o poema cisma de ser

e se esparrama.

 

 

Apuro

 

O poema apura o poeta

quando o coloca em apuros.

O poeta apura o poema

quando retira as escoras.

E assim gastam os dois,

horas e horas,

em cima dos muros

medindo as esporas.

 

Apenas

 

Dei minha palavra

ao poema

de que valeria a pena

mas deu pena

da palavra

ali fazendo cena

enquanto o poema

me depenava.

 

 

Tormenta

 

Trabalhar com frases soltas

exige desprendimento:

pode vir um vento

desses de mar de ondas revoltas

e fazer das frases, quases,

fases sem sedimento

ou quaisquer razões ocultas.

 

 

 

Branco

 

Deu um branco

no papel

e o poema

(meu corcel)

pegou no tranco.

 

 

 

Fiz que

 

Ninguém me belisque:
eis que
bastam dois dedos de whisky
para que eu me arrisque
um Leminsk.

 

 

Pente Fino

 

O poeta afina a pena

sua

chora

descabela

mas passa o pente fino na memória eterna

e a caspinha que cai

serve de lanterna.

 

Se dar por achado

 

Um achado

não se acha assim

de bate pronto

ali do lado.

Tem de ser escavado

ponto a ponto, muito a fundo

até ao estado de um encontro

pra lá de desencontrado

com o germe de outro mundo.

 

 

 

Nada pessoal

 

O poeta mente que nem sente.

Passa sempre rente a um ente

inexistente, que ele completa

eternamente com o poder da mente

desse mesmo ente ausente

que inexplicavelmente lhe completa

e o faz poeta.

 

 

Nome aos bois

 

Ao poeta cabe dar outros nomes

aos nomes dos bois com os mesmos nomes

dos bois de antes e depois.

Se os bois mugirem, que esse mugido

seja lido como goiva na relva

dos sentidos, e não como urro de animal,

coisa supérflua.

E se o boi celebra ao lado de outro boi, a névoa,

ao poeta cabe descaber a trégua

entre os dois

sem régua. Como a desnomear a pedra.

E libertar a fala oculta,

novilíngua, ensimesmando em sonho os outros bois a léguas.

 

 

 

Afazeres

 

Dar a todos os sentidos

a conformação de franja

como se a sisudez do olhar

fosse a antecipação da lança.

 

Criar esconsa geografia

na gramática do sê-lo.

Dar ao cheiro

seu silêncio e ao silêncio

o mais de exílio.

Mastigar, não pelas carnes

mas o sêmen do que servem

mais que sêmen: o cerne.

 

Ver o mar por seu repuxo,

não pelo seu desassossego.

Ver o céu, não por seu estilhaço

mas pelo que tem de vago.

 

Como se cada narina

fosse excelentíssima pinça.

Como se cada pupila

fosse uma foice avessa:

só rasgo.

 

Dar ao tato o mais do espanto

pelo extrato do arrepio

até mais que pelo hirsuto: o a postos

que antecede o gozo.

Dar a todos os sentidos

a confirmação do anjo.

Agulha

 

Casa de espelhos

 

Mergulhou

no espelho

atrás de uma agulha

no palheiro do ego,

e encontrou algo

muito além de um orgulho

cego.

Encontrou desassossego.

 

 

 

Mintotauro

 

Imito o mito;

me tomo por

Minotauro,

não Mauro,

mas o touro

murado no

labirinto.

Só omito

que já não há novelo

muito menos fio

e que rio do Teseu astuto

e o engulo puto

e depois vomito!

Eis o rito secreto

do mito que há muito imito.

 

Lusco-fusco

 

Aproximei-me tanto de mim

que esbarrei no meu avesso.

Com isso, quase que eu cresço

quase que eu corro esse risco

de ser tanto não quanto sim

ou pior, o oposto disso

nem muito breu nem corisco

nem não, nem sim:
lusco-fusco.

 

 

Flores do mal

 

Numa noite sem fundo

onde flores vãs

erguem seu mundo negro,

alegro-me tanto com os

leviatãs de fogo

saltando do lodo do meu medo,

que quedo-me a desejar

que todas as manhãs

tendam a mais tarde do que cedo.

 

 

Palimpsesto

 

Tornei-me tudo

quando nasceu de mim

um vasto mundo.

Hoje eu me gasto infindo

e não me basto. Contudo

no fim do meu sem-fim

alguém anda mentindo a rodo:

 

ou tornei-me tudo

que nasceu de mim e nisso insisto,

(cri-me cristo?!)

ou o mundo em mim

tornou-se um palimpsesto engodo

e eu nem de mim me resto.

 

 

Acasalado

 

Pra minha sorte, 
não sei o que faço, 
onde passo
se é caso de vida ou morte, 
se é um cansaço 
ou um corte 
no espaço humano. 
Pro meu azar 
o prazo já anda escasso 
meu norte, um estilhaço 
de forte teor insano. 
Pra minha sorte 
falta-me um plano 
e o acaso é o meu forte.

 

 

Mancomunado              

 

Mancomunado com o mundo 
munido de tudo 

num dociracundo arado.

 

Mancomunado com o miúdo 

no desmando de campo 

ao antro atado.

 

Mancomunado com o profundo 

som, sobretudo o mudo 

o imaginado conteúdo.

 

Mancomunido de nada 

e cada vez mais atado a tudo 

manteúdo e condoído dom.

 

Mancomunado com o miúdo 

no desmando de campo 

ao antro atado.

 

Mancomunado e vagabundo 

oriundo de um lugar

onde um rotundo não 

é desde sempre dado.

 

Mancomunado com o comum 

e com o cúmulo, 

mancomunado.

 

 

Ostracismo

 

Cismo em ser ostra
Astro escuso. 
Outra Regra.
Enovelo-me em ponto
de cabra-cega.
Preciso de escudos
contra quais setas?
Acasalo-me com o ocaso.
Mergulho raso. Rezo baixo
dentro do nada.
Agora tudo é um silêncio
de fracasso.
Como num jogo
eu digo: passo!
E passo 
sem ser visto,
cataclismo baço.
Antro atado ao malogro 
no tempo escasso.
E a ostra que posso ser
é também breve prefácio
de cadafalso. 
E de mim me descalço.
Mas é tudo falso?

sempiternos

 

Soneto

 

Se há uma flauta de fôlego contínuo
que, findado o coro, persevera em som;
tudo será passado sem destino
tudo uma orquestra a interpretar néon...

Se, do contrário, a flauta sempre cala
e no descanso o seu som estuda;
a hora muda e o tempo nada fala
para que o instante do instrumento ecloda

numa ilusão de farto afã, futura.
Uma ilusão bem vinda ao pé do ouvido
de que ao soar, o mundo mais se apura,

mesmo seguindo um tempo pervertido
de um maestro que não se segura
ante uma orquestra que não faz sentido.

 

 

 

A passagem do anjo

 

Fiar a conversa

e depois desfiá-la

elegantemente

até que essa conversa

inversa

cesse de repente

e fique na sala,

como um tapete persa,

aquela fala que resvala a farsa

de um silêncio urgente

quando já não há nenhuma pressa

de ser gente.

 

 

 

Não há

 

Há um lugar

cheio de vazios.

vazios com recheios ocos

onde nem ecos ecoam seus anseios.

Há sim, um lugar sem veios

sem lugar para devaneios

de rios só leitos

e de leitos só rumos

rumos, meios.

Esse lugar sem brancos e pretos

sem qualidade nem defeitos

abstratos e concretos

é um locus. É um ethos

Que Deus (se há!)

só quis legar (esse lugar)

aos loucos

aos santos

aos mortos

e a alguns poucos eleitos.

 

 

 

Decerto

 

Num deserto

todo perto é longe.

O tempo age,

inflige um parto.

O tempo urge,

o tempo range

e o espaço aberto

é um tormento sem margem

de acerto.

 

 

 

Au revoir

 

Maravilhamento!

Momento em que a bolha

navega o vento

sem nenhuma escolha.

 

 

 

Cabeça de vento

Quase que eu pego a manhã pela gola, 
mas degringolou um vento 
e já não mais havia onde 
as unhas do pensamento. 

Contentei-me em imitar a aurora 
com um poema ermo de alumbramento. 

Amanhã a manhã me degola 
e se Deus quiser, na hora, 
ganho uma cabeça de vento 
só por meu mau comportamento!

 

 

Estreia

Se uma estrela estreia 
no céu e ninguém sabe, 
será que cabe a nós sabê-la? 

Se ela, lá, elabora quimeras, 
nós, as bestas-feras, 
nem conseguimos prevê-la? 

Só intuímos as tais 
atrelados às nossas tramelas, 
tentando escancarar janelas 
nas almas, sem nenhuma paz: 

somos assim, enfim, 
seres iguais às estrelas
(sem olhares para acolhê-las) 
que não veremos jamais.

 

 

 

Ágora

 

O tempo não está 
no gesto alheio, 
ilhado do outro lado. 
O tempo não está 
no móbile, 
no bule, ou na bala. 
O tempo não está 
na duração da seiva 
na selva, 
ou na savana. 
O tempo está 
no centro. 
Não corre, 
Jorra. 
E não há porre. 
Porque depois 
não há.

 

 

 

Fio solto

 

Puxar pelo fio da memória

E esgarçar o passado

no fio mal puxado.

Ah! Glória momentânea da nostalgia!

 

 

 

 

Devaneio

 

Recordar é viver

o já vivido sem ser

e refazer o prazer

numa redoma de vidro.

 

Já imaginar é viver

o que não é permitido

é devolver ao porvir

o devenir da libido.

 

 

 

Grua

 

Um lugar

fora do lugar:

alívio e exílio.

Ponto suspenso

no pensamento plano.

 

 

 

O voo

 

O voo do ovo:

levitação da falsa pedra

do seixo

nova lua oca

louca nave decapitada.

 

O voo do ovo:

antecipação da asa

catástrofe latente

à flor da casca.

 

O voo do ovo:

não-pássaro calvo

alvo móvel

da incerteza.

 

 

 

Ai, cai...

 

Algo que surja
como, na areia, a garatuja
carangueja.

 

 

 

Atear

 

No tear da arte 
o tempo tece o instante que nos veste de fascínio. 
E clarivemo-nos nus e a sós 
com o céu que nos antecedeu 
o primevo sonho.

 

 

 

Rol

 

No rol dos rumos, 
dentro, centro e fora 
é do onde se olha.

 

 

 

Gula

 

E o mundo deu liga. 
Agora siga, engula, 
agarre pela gola 
o mundo que deambula 
em trajes de gala 
por nenhum lugar.

Ou tudo degringola 
ou tudo engrena. 
Ou gangrena 
ou entra de sola.

O mundo sem bula 
burlando o galo 
da madruga. 
O gogó engalanado 
o lago aziago 
das horas. 
Agora salgue, 
legue ao dia 
o mais do algo. 
Augúrios 
agoras.

Docinferno

 

Ouro Negro

 

O amor parece fácil

no início.

Contra a inércia: cio.

Contra a inépcia: vício.

Mas depois, que coisa incrível!

Vê-se que é um combustível fóssil

de acesso bem difícil...

 

 

Tarefa

O amor é um tarefa grata: 
Sísifo levando a pedra ao topo, 
Curupira protegendo a mata. 
O amor é uma tarefa dura e não dura, 
ou dura uma bravata?
Não tem temperatura exata, 
não tem medida, 
e ainda coloca o dedo na nossa ferida, 
nos destrata. 

O amor é um serviço sujo 
e tudo fica límpido 
com o viço do dito-cujo.
Abutre devorando o fígado 
de Prometeu, 
Penélope fiando e desfiando o tempo: 
o amor é de momento 
e quer-se eterno. 

O amor é um docinferno! 

Barca de Caronte? Monte Olimpo! 
Brindo ao amor com absinto 
e sinto, sinto, 
sinto muito, amor! 

O amor é uma tarefa: 
Separar afetos frios 
dos que estão pelando. 
Separar o que é espelho, 
e logro e mau conselho, 
revolver o fundo 
com um escafandro 
e ver que sobra só, no final, 
um amor que não tem causa, 
asa de vapor aberta 
ante o sol sem rosto, 
casa mal caiada 
e até de mal gosto, 
mas abrigo sem o qual não vivo 
nem mais um minuto.

 

 

 

Espiral

 

Ela pede palavras 
na folha límpida.
A rápida 
centelha da ideia 
não toma a forma 
gráfica da letra.

 

Menos ainda 
a língua pode
a saudade de vê-la
solicitando-me
nuvens de signos 
que ainda
são futuros 
no colo do pensamento.

 

Invento, então, um tempo
verbalizado com o acaso
para estender meu prazo
e dela colher 
a centelha de estrela
que será meu cosmo.

 

A minha palavra em sua boca
toma a forma barroca
do orgasmo.

 

 

 

Desastronauta

 

Movi céus e terra atrás de ti.

 

Ah! Como um homem erra!

Só depois de feito o caos,

depois de ter sujado

a minha barra com Deus

com tanta marra,

só então percebi

que nem assim te comovi!

 

Porra!!

Vou ter que arrumar

toda essa zorra

senão o infinito emperra.

 

Pra que eu fui mover por ti

os céus e a terra?

 

 

 

Relicário

 

Pra caber no relicário

fiz um verso diminuto

ato extraordinário

de um teatro todo enxuto.

 

Vendo bem, não tem cenário

dura menos que um minuto

o diálogo é sumário

e o palco é devoluto.

 

Mas no verso breviário

consegui salvo-conduto

pra bancar o visionário

e ser teu arauto astuto.

 

Esse verso imaginário

infinito em teu reduto

é arguto e tributário

do amor como atributo.

(Como um amor tão resoluto

foi caber num relicário?)

 

p.s. Fim do meu vocabulário

Tentarei não ficar puto

 

 

 

Live

 

Na ponta da minha língua

a palavra água tenta ser saliva

e trampolineia apolínea

rumo ao vão do ouvido alheio,

e acerta em cheio

o mar vindouro da palavra fêmea

que a minha língua ainda anseia.

 

 

 

Olhos nos olhos

 

O que fazer com atos falhos

como esses

de comer com os olhos

outros olhos

como atalhos?

Ou de pular de galho em galhos

pelo prazer de ter

os mesmos olhos (atos falhos)

como uma penca de penduricalhos?

 

 

 

Lábios

 

Lábios

desses feitos de polpa

que melam minha íris de anseios.

Lábios escuros, prontos, terminados

com argamassa e autossustentados

com peso em ouro

Princípio, muito meio, e fino fim.

Lábios que não cabem mais na boca

viris de meigos que adoro-lhes

quase beiços, beijos próximos.

Lábios, como eu prometo tê-los

entre os meus lábios

confundidos num descuido.

 

 

Volteio

 

O amor não é desse mundo.

No fundo, no fundo,

o amor é quando não há

mais nada em volta

e a gente volta o olhar,

não para o que não está

como quem se revolta,

mas para o que nos faltará

quando não houver mais volta.

Alfarrapos

 

Quimera

 

Ah! Quem me dera

esbarrar todos os dias,

com a mentira cálida

louca, lépida, alada

que jaz ali, calada,

por detrás de toda

verdade cansada

de ser verdade,

e mais nada!

 

 

Pra não dizer que não...

 

Que flor não é receptáculo

espetáculo na ponta do caule

que alivia o cálculo das dores?

Que flor não é uma vulva olorífica

uma órfica visão

anticientífica

ao alcance da mão?

 

 

Plano sobre plano

 

O aeroplano pinça píncaros

e cai.

Ave sem força esbanjando graça

garça aterrissante.

Não alça voo

não começa.

Traça um plano,

pleno de ameaças

esboça um salto

boceja

e passa.

Quintessência da dependência

Aeropluma

Aeropleno

Aeroplástica da queda.

 

Agora a barriga banha-se de grama

e o descampado arranha

o braço, o beiço...

Subitamente descamba e para.

 

Sai da cabine, seu coração

que até então

diagonizava em voo.

E o aeroplano fica lá:

Penélope tomando sol sem sonho.

 

 

O Livro

 

O livro que se lê no claro

ensina o preto e branco aceso.

Antes do cérebro que refina,

as linhas se convertem unas.

 

Alteram rotas as colunas

e o livro surpreende aberto.

Certo e prático, sem cenas

de energia intensa em cima.

 

E como se dobrasse a esquina

tenta o livro o pulo ao centro

que a letra lenta desanima.

 

Mas contraído elide o cetro

da destreza, o que dá pena:

descompassado, implode. Quieto.

 

 

 

Clóvis

 

Espera-se a festa que a roupa

na fresta do tempo aberta

vaza a naftalina.

No muro da casa-confeito

a nada sutil fantasia estica-se

toda carne-de-sol.

Diga-se arco-íris!

Preveem-se sorrisos, suores, esgares

noitadas...

Espraia-se a roupa bandeira,

estrela caseira do mar,

prato de porcelana pintado na varanda

e o entardecer de domingo

boceja madrugadas de Momo.

 

 

 

Constatação inútil

 

Um prato feito

sempre tem

um jeito abstrato

de mesa imposta.

 

 

Mão na roda

 

A mão na roda

é uma ode a ação

na hora do deus nos acuda.

Ainda mais se essa mão

for prendada

ou for caluda.

 

 

Caracol

 

O caracol segue sendo casa

e lodo e inundação e gozo

no corpo transeunte.

É como se o beijo da pedra

fosse um trilho aceso a palpitações,

ou mais ainda, como se horizontal

o caracol soubesse as lanças

do descortino.

 

Ele relata sua passagem

Com a inocência de quem mija

rente.

Sobejadamente

espera a hora de ser crosta terrestre.

 

 

Roda de choro

 

Era pra ser trançada de silêncio

uma tarde qualquer de domingo.

A poeira que levanta na praça

caprichosamente

desvia dos olhos dos pardais

e as vagens despencam dos oitis

como órfãs.

Voam sombras de voos no vão do chão.

Era pra ser bordada de respeito

uma tarde qualquer

de domingo

mas esse bate-estaca

destrata a tarde

e já é tarde pra chamar

aquela roda de choro.

 

 

 

Sonho

 

Já ficou banal sonhar um sonho.

Por isso, resolvi capturar o sono

e espalhar pelo dia os seus vestígios

e nele construir meu redelírio

um sonho feito mais de pedra

do que idílio.

Deixo ao meu amor esse sonho em brasa

muito nuvem bruma névoa rasa

que sempre me enviesa.

 

 

 

Lucien Freud (para o Gamba)

 

O maior pintor vivo

pinta o morto

em carnação passada

à limpo, na altura do seu

salto.

 

A carne: e a dor crava

a vista no adorno.

Cega ação,

espatulada

tanto que perfura o olfato.

 

A pintura morta

em natureza aérea,

é tão humanamente séria

que profetiza o erro.

 

O maior pintor morto

Ainda vive trapo

e espera-se o alticontrito,

fim do seu desterro.

 

 

Tarsila

 

Ela alonga o pé do boitatá de ferro.

Parece erro, mas não é.

É raio lúcido nos dedos

é tela de maracujá.

 

Ela lambe os trilhos com os pelos.

Elos entre um Brasil que oscila

entre o que foi e o que será

 

Tarsila

 

Tarsila

meu coração atila

ao ver tuas visagens cheias

tuas veias vias longas

algas no cimento e vento

escancarando os olhos do

Abaporú.

 

Tarsila

minha visão desopila

por ti delira

e se desvira num tatu.

Vão

 

Levante

 

Tudo é relevante. 
Tudo é. 
Tudo. 
Reles realeza avante. 
Dote, dente de leite derramado. 
Tudo é revelado. Resvala no sagrado. 
Tudo. 
É. 
Importante. 
Cortante. 
Corte império ou corte secante. 
Tudo é evidente. 
Devir e houve um dia dantes. 
Tudo. 
Tudo é. 
Totalmente imantado de durantes. 
Levante!

 

 

 

Empedernida

 

Pedra na vidraça,
passa
Povo na praça,
fica.
Finca uma estaca
rija
No rosto da polícia.
E o rastro da massa
amansa
a mais cruel desavença.
Fogo no bus
devolve
fogaréus do dia a dia:
as pisadelas diárias
que imitam torquemadas, 
mas a voz que surge do nada
esgarça
as túnicas dos mandantes.
Sem meta, o grito 
é rito que não ecoa.
Para no muro,
no escudo,
no cenho franzido,
no medo.
É flor que se esboroa.
A flor de dentro é outro engenho
empenho de vida em vida
Não quer laurel, quer o sonho
Não quebra pau,
Quebra a alma 
empedernida.

Panelas

 

 

 

Palavras? Não as encontro.
Será possível pensar de bate pronto? 
Ou sem a escora delas, 
Como alguém que pensasse ao bater panelas?

 

 

 

Exceção

 

Então, 
nesse (unís)sono pesado,
Quem vai dar o próximo pass(ar)o?
O homem de aç(id)o?

 

 

 

Bomba de gás

 

Se o futuro é cancelado
o único tempo à mão
é o presente concentrado
no gás da revolução.

 

 

 

Miragem

 

Grafitado na minha retina: 
Esse muro é mera miragem.
Ultrapense-o!

Voraz

 

Como poesia (numa hora dessas)?
Como poesia (ao dia meio)?
Como? Poesia? 
Quem come seu próprio nome?
Como,
se é outra a fome?


 

 

Cão com plumas

 

Pende da boca torta

do cão raivoso

a baba que nos exorta ao crime:

aquilo que nos indefine,

o colo que nos desconforta.

 

Mas de repente um lume

arromba a porta

e dos seus olhos frios

irrompem rios

num total desrrumo.

 

E o cão que amo

enquanto a boca espuma

nos oferece a foice

como uma flor corta,

nos oferece a faca

como se fosse pluma,

nos oferece a face

como não fosse morta.

 

 

Contradição

 

Nada acontece aqui
mas todos aqui estão.
Sobra céu
onde nos falta o chão.

Quando a tua mão 
deixa de existir
como erguer o véu
da contradição?

Nada acontece em vão
mas todos se deixam ir.
Sobra o sim
onde nos falta um não.

 

 

Antinau

 

No casco lia-se:
Lacuna
Escuna de sal navegando a farsa.
A rota: nula.
A lua, alta, no céu faltava 
como hoje a rua 
anda erma de céu.

E deu um branco na memória
mas a ciência da ausência
é contar uma história
sem a mínima existência.

Na vela via-se: nada.
A água parada
fantasmagorava.
Até o que não era
sumia,
e o oceano achou seu ralo.

Sobre o que não se deu, 
depois,
eu calo.

Aliás, nem fui,
nem vi, nem sou.
Só sei que a âncora
pisou em falso no sem fundo.
E, nem mesmo quando o...

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